Sobre Materialismo Espiritual

03/02/2013 18:01

Termo criado pelo mestre tibetano Chögyam Trungpa (1976) para designar uma tendência ao apego às experiências espirituais. “Um certo número de atalhos conduzem a uma versão distorcida, egocêntrica da vida espiritual. Podemos nos iludir ao pensar que nos desenvolvemos espiritualmente, enquanto que, de fato, usamos técnicas espirituais ‘para reforçar nosso ego. Esta distorção fundamental merece o nome de materialismo espiritual.” (Trungpa, 1976, p. 11)

 

“O problema é que o ego consegue transformar todas as coisas visando ao seu uso próprio, inclusive a espiritualidade. O ego está constantemente tentando adquirir e aplicar os ensinamentos da espiritualidade em benefício próprio. Os ensinamentos são tratados como uma coisa externa a pessoa, uma filosofia a ser reproduzida. Na realidade se fala em renúncia do ego o que acontece é uma tentativa de imitar essa renúncia. Cumpre-se formalidades, faz-se os gestos apropriados, mas, na verdade, não  se quer sacrificar parte alguma do nosso modo de vida. Sempre que se começa a sentir qualquer discrepância ou conflito entre as ações cotidianas e os ensinamentos, imediatamente interpreta-se a situação de modo a abrandar o conflito. O intérprete é o ego no seu papel de conselheiro espiritual.

De acordo com a tradição budista, o caminho espiritual é o processo de atravessar e superar a nossa confusão, de descobrir o estado desperto da mente. Quando esse estado se encontra entulhado pelo ego e pela paranóia que o acompanha, assume o caráter de um instinto subliminar. Dessa forma, não se trata de construir o estado desperto da mente, e sim de queimar as confusões que o obstruem. No processo de consumir as confusões, descobrimos a iluminação. [...] O cerne da confusão é o fato de o homem ter um senso de ego que lhe parece contínuo e sólido. Quando ocorre um pensamento, uma emoção, ou um evento, há o sentido de que alguém tem consciência do que está acontecendo. Esse senso do eu, na realidade, é um evento transitório, descontínuo, que em nossa confusão parece perfeitamente estável e contínuo. Como tomamos por real a nossa visão confusa, lutamos para manter e incrementar esse eu sólido. Tentamos alimentá-lo com prazeres e escudá-lo contra a dor. A experiência ameaça continuamente revelar-nos nossa transitoriedade, de modo que lutamos continuamente para encobrir qualquer possibilidade de descoberta da nossa verdadeira condição. [...]Essa luta por manter o senso de um eu sólido e contínuo é obra do ego. Trungpa apresenta a metáfora do budismo tibetano para o funcionamento do ego: Três Senhores do Materialismo: o "Senhor da Forma", o "Senhor da Fala" e o "Senhor da Mente". O Senhor da Forma refere-se à perseguição neurótica do conforto físico, da segurança e do prazer. Nossa sociedade altamente organizada e tecnológica reflete nossa preocupação em manipular o ambiente físico de modo a nos salvaguardar das irritações provenientes dos aspectos crus, rudes e imprevisíveis da vida. O Senhor da Fala tem a ver com o emprego do intelecto no relacionamento com o mundo. Adotamos grupos de categorias que servem como alavancas, como meios para manipular fenômenos. Os produtos mais plenamente desenvolvidos dessa tendência são as ideologias, os sistemas de idéias que racionalizam, justificam e santificam nossas vidas. [...] Aqui o Senhor da Fala indica a inclinação do ego a interpretar o que quer que seja ameaçador ou irritante de modo a neutralizar a ameaça ou transformá-la em algo "positivo" do ponto de vista do ego. O Senhor da Fala refere-se ao uso de conceitos como filtros que nos resguardam de uma percepção direta do que é. O Senhor da Mente refere-se ao esforço da consciência em conservar a percepção de si mesma. Buscamos disciplinas espirituais ou psicológicas como meios de conservar a consciência que temos de nós mesmos, de nos agarrar ao senso de eu: drogas, ioga, orações, meditação, transes, várias psicoterapias — tudo pode ser usado com essa finalidade. O ego é capaz de converter tudo para seu uso próprio, inclusive a espiritualidade.

As defesas dos Senhores são criadas com material das nossas mentes, que eles utilizam para preservar o mito básico da solidez. A fim de enxergar por nós mesmos como esse processo funciona, precisamos examinar nossa própria experiência: "Mas como", podemos perguntar, "haveremos de conduzir esse exame? Que método ou instrumento vamos usar?". O método descoberto pelo Buda foi a meditação. Ele verificou que lutar para encontrar respostas não surtia efeito. Só quando havia brechas na sua luta é que lhe acudiam discernimentos. Começou a dar-se conta de que existia dentro de si uma qualidade sadia e desperta que só se manifestava na ausência de luta. Por isso, a prática da meditação implica "deixar ser".

Mediante o exame dos seus próprios pensamentos, emoções, conceitos e demais atividades mentais, o Buda descobriu que não precisamos lutar para provar nossa existência, não precisamos ficar sujeitos ao jugo dos Três Senhores do Materialismo. Não há necessidade de lutar para sermos livres; a ausência de luta, em si mesma, é liberdade. Esse estado desprovido de ego é a realização da natureza búdica. O processo de transformar o material da mente para que deixe de ser expressão da ambição do ego e passe a ser, por meio da prática da meditação, expressão da sanidade básica e da iluminação — eis o que poderíamos chamar de verdadeiro caminho espiritual”.

 

TRUNGPA- Chögyam- Além do Materialismo Espiritual, SP.Cultrix, 1986, p.9-16.
Revisão de conteúdo e forma; Grupo de Estudos do Dharma  de São Paulo.
Copyright by Chögyam Trungpa,1973.